quarta-feira, 13 de julho de 2011

Prova de Fogo

Nunca compreendi a paixão de muitas pessoas por escalada e/ou duras provas de esforço.
Adoro caminhadas em pisos planos e trilhos relativamente bem definidos. Escalada: nem por isso.
Bom, decidi um pouco inconscientemente (ou devo dizer conscientemente, uma vez que o cérebro não se decidia, mas a intuição dizia para não ir e o primeiro acabou por escolher) subir o trilho por onde muitos haviam passado e falavam maravilhas dessa experiência.
Devo referir que quando cheguei às ilhas tinha uma enorme vontade desta experiência, mas depois de me informar e ver as fotos dos primeiros exploradores do grupo, a vontade caiu por terra. E não voltou. Não voltou até que duas pessoas com quem me dou bastante bem me convenceram mais pela companhia do que pela experiência a enveredar por este desafio.
A ilha é bonita na sua simplicidade e exotismo. A capital faz lembrar as antigas vilas portuguesas e cada casinha tem uma colorida e calorosa fachada. Existem algumas praças agradáveis com banquinhos, alguma vegetação e vestígios do que teriam sido fontes, mas são agora apenas pequenos blocos de pedra que a água não abraça (não é estranho, uma vez que a falta de água é uma constante neste pequeno cantinho árido). Uma praia de areias negras é banhada pelo melancólico balanço do mar (que dizem ser bravo, por aqui). E, de lá, avista-se o que parece ser uma montanha a nascer do seio dessa bravura, com a nuvem suspensa que a adorna.
Prosseguimos para o interior.
A paisagem é semelhante à de outras ilhas. A aridez enfeitada por árvores esporádicas que parecem resistir às condições mais adversas. Ao chegar ao desejado lugar, o que os olhos vêem é um cenário único. A terra parece ter-se vestido de negro. Uns cumes aqui e ali e alguns pontos de pedra a rodear a paisagem. E um majestoso cone na sua escuridão impõe-se: a cratera dentro da cratera. Esta visão parece saída dum outro planeta.
Ao anoitecer o cenário é ainda mais apocalíptico. Pareceria mesmo que estaríamos na lua com um céu definido e as estrelas tão próximas, não fosse ela nessa noite brilhar num delicioso quarto minguante, iluminando aquelas casinhas e caminhos de pedra.
O serão dessa noite foi breve. Pelas 21h já estávamos recolhidos (para além da electricidade ser contada e poupada até ao limite), no dia seguinte acordávamos ainda antes do sol, para a longa caminhada que nos aguardava.
Bom, chegado o tão ansiado e temido momento, lá nos largamos pelo sinuoso caminho de pedra até ao cume. Esta parte muitos não a referem, mas na realidade o caminho até ao cume é de cerca de uma hora, caminho esse que terá de ser percorrido novamente no regresso.
Apenas após este período se inicia a subida. A tão famosa subida é mais uma escalada do que propriamente uma caminhada, nomeadamente nos metros finais (que mais parecem intermináveis quilómetros).
Sim: eu pensei eu desistir. Acho que todos pensam. Inicialmente ainda cá em baixo quando seria mais fácil voltar atrás e, depois, já nesses metros finais: os sempre quase, quase a chegar à cratera. Posso dizer que devo ao guia ter continuado, sobretudo no momento em que ele me informou que desceríamos por esse mesmo trilho e parecíamos estar tão perto e simultaneamente tão longe do final dessa dura prova de esforço em que estávamos metidos.
Estava triste, fatigada, desanimada. O cansaço apoderou-se de mim de forma violenta. Questionei-me o que me havia trazido até ali, percorrer algo que não queria percorrer, fazer algo que na realidade não queria ardentemente fazer. Seriam as pessoas exteriores? Porque todos o fizeram e acharam bestial, também fazemos o mesmo, como se essa fosse também a nossa vontade? Seria a sensação de fazer parte do grupo dos que conseguiram? É assim tão necessária a aprovação dos outros? Ou a nossa própria aprovação depende do reflexo dos outros? Quantas vezes cedemos a pequenos caprichos que julgamos ser nossos, quando na realidade não o são?
Nota pessoal 1: não ceder a pressões exteriores.
Deveria ter escutado a minha intuição.
Nota pessoal 2: quando a razão está em dúvida, escutar aquele sexto sentido que temos cá dentro é, sem dúvida, a melhor opção.
Embora o cenário durante a escalada seja interessante: as nuvens debaixo dos nossos pés, as íngremes pedras que vamos percorrendo, a nossa sombra reflectida na negrura; estava tão fatigada, tão sem fôlego, tão fisicamente estafada que nem conseguia desfrutar devidamente cada pormenor.
Quando finalmente atingimos o topo (e o cheiro a enxofre atingiu o seu máximo), tal como esperava, todo aquele esforço hercúleo não foi, a meu ver, compensador. A paisagem é bonita, mas não deslumbrante: não corta a respiração (já de si cortada da subida).
As nuvens pareciam nascer da base e, embora dessem um ar feérico ao todo, impediam de ver aquilo que a meu ver talvez pudesse ser compensador: o mar – sempre o mar. Em todo o seu esplendor e a banhar cada curva da ilha.
Até hoje vi apenas três paisagens que valem, para mim, um esforço desta natureza (acho que ainda não viajei o suficiente – e haverá tal coisa como viajar o suficiente?). Embora nenhuma das três seja um cenário totalmente natural (excepção para a passagem aérea sobre o Grand Canyon que pela amostra será uma de muitas belezas naturais que valem essa escalada), são um deslumbramento pelo enquadramento, magia e perfeita harmonia. O trio pelo qual perderia o fôlego para os olhos se banquetearem novamente com festins assim são: as sinuosas e recônditas ruas e canais venezianos, a Baía da Guanabara vista do Cristo Rei e, claro, Abu-Simbel.
Assim, e contrariamente ao que todos disseram, não acho que valha a pena um esforço sobre-humano para a contemplação deste cenário.
Ao observar o interior dessa segunda cratera e todos os nomes deixados por viajantes que por lá passaram, imaginei que um dia tudo seria varrido pela chuva de fogo do vulcão. Isso sim seria um cenário deslumbrante e único. Seria também o último que testemunharíamos: fascinante e aterrador. Mas imaginei. Imaginei um mar de chamas a erguer-se e a varrer aquelas letras. Assim como todos nós um dia seremos um dia varridos da face da Terra. Não nós: matéria. Passaremos a fazer parte do corpo terrestre: transformação. Mas nós como seres pensantes, pessoas com alma, desejos, alegrias, receios, pensamentos e sonhos.
Repousámos um pouco no topo. Escutámos histórias dos guias e confraternizamos com um outro viajante, um professor alemão que havíamos conhecido na véspera.
Iniciámos a descida (supostamente um dos momentos altos). Não posso negar que é fascinante admirar uma estrada de pedras negras quase tão íngreme como a parede duma casa. Descer por ali é enterrar-mo-nos em pedrinhas até às canelas, ficar com o calçado repleto de areia, duplicar o cansaço das pernas e definir as maleitas nos pobres pezinhos (que o diga o meu pezito direito que ficou com duas feridas e uma bolha).
Depois de três sacudidelas das pedritas dos sapatos, as meias não resistiram e os pés estavam quase tão negros como o chão).
Quando chegámos à base, a uma hora de caminho, mal podia crer. Tive de me apoiar numa das bengalas do guia (já para não falar que desci com o apoio da sua mão).
No fim, acho que nunca fiquei tão contente por me descalçar e alcançar uma garrafa de água.
Recomendo vivamente a quem gostar de escalada. É uma experiência interessante.
Para todos os outros, a menos que adorem provas de esforço e sejam fisicamente resistentes, não acho que valha a pena subir. Vale a pena ver a ilha, mas a subida é demasiado para o que se contempla. Há quem considere que se trata dum desafio para connosco próprios...
Eu continuo a preferir longas caminhadas por terrenos mais planos, preferencialmente à beira-mar. 

Dedicado aos meus resistentes companheiros de viagem e ao nosso paciente e generoso guia.

3 comentários:

  1. E não mencionas tu a parte em que eu te carreguei às costas!
    Vá lá que levamos água suficiente e bananas e bolachas e lenços de papel e tudo! ;)
    Quando quiser subir a outro vulcão, lá pra daqui a 20anos, convido-te, ok?
    Combinado...

    P.S.: fantástica imagem, ver-te a ti e ao guia a descer de mão dada...

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  2. Ari, concordo plenamente contigo...uma imagem fantástica e sem dúvida das partes mais bonitas da nossa descida, mas a tua falta de equilíbrio... :D

    Natália, adorei! :)

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  3. Adoro tua escrita.. me transportei pro desafio e tb fiquei cansada com dores nas pernas.
    Concordo plenamente com tudo, caminhada em terrenos planos são óptimas para pensar e desfrutar a paisagem! Tb prefiro! LOL :)

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