sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

"Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar."
Alberto Caeiro
"No lugar dos palácios desertos e em ruínas
À beira do mar,
Leiamos, sorrindo, o segredo das sinas
De quem sabe amar.
Qualquer que ele seja, o destino daqueles
Que o amor levou
Para a sombra, ou na luz se fez a sombra deles,
Qualquer fosse o voo.
Por certo eles foram mais reais e felizes."
Álvaro de Campos

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Henry e Anais

O título do filme era Henry and June, mas quem sobressai verdadeiramente na história da literatura são Henry Miller e Anais Nin.
Um homem selvagem, duro, cru, até mesmo cruel.
Uma mulher com sede de aventura e de sensualidade.
Ambos se encontram no amor às palavras, a paixão pela literatura.
A escrita dela é bem diferente da dele. Ele é muito directo e rude. Ela é delicada e subtil.
Ambos tocaram a vida um do outro, influenciando o que cada um escreveu e a maneira como o fez.
Esse grande filme de Kaufman - que é Henry and June - debruça-se sobre a vida do escritor Henry e da sua segunda esposa e musa inspiradora June. Esse período coincide com a época em que Anais e Henry se conhecem. No filme ela é esplendidamente interpretada por Maria de Medeiros.
Desde o momento em que se cruzam, estes dois autores ficam entrelaçados; sendo tal bastante notório numa deliciosa compilação de cartas que Henry escreveu a Anais.
A obra que cada um deixou é um marco incontornável da literatura, tendo sido abertas muitas fronteiras e quebrados muitos tabus.

sábado, 18 de dezembro de 2010


“I went to the woods because I wanted to live deliberately,
I wanted to live deep and suck out all the marrow of life,
To put to rout all that was not life and not when I had come to die
Discover that I had not lived.”
Henry David Thoreau (12/07/1817 - 06/05/1862)

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Flor ao sabor do vento


"Caminhar sem rumo é uma grande arte."
Henry David Thoreau (12/07/1817 - 06/05/1862)

sábado, 11 de dezembro de 2010

Never say never!

I Thought An Iceberg Never Melt

Adeus!

"Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus."

Eugénio de Andrade

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Paul Newman

Um actor extraordinário, um activista aplicado, um ser humano admirável.
Não é segredo nenhum que nutro uma elevada admiração por esta lenda inspiradora.
Paul Leonard Newman nasceu a 26 de Janeiro de 1925 no estado de Ohio.
A sua primeira aparição foi na Broadway, na peça Pic Nic em 1953, com um desempenho bastante promissor.
No entanto, o seu primeiro filme foi - um (consta que) terrível - The Silver Chalice. Newman viria, anos mais tarde, aquando da exibição do filme num canal de televisão, publicar desculpas públicas numa página inteira de jornal a todos os que tinham visto o (desolante) filme na véspera. Este episódio demonstra duas das principais características apontadas por todos os que privaram com Newman: o sentido de humor e a humildade, ou (basicamente) a capacidade de rir-se de si próprio.
Para além dum excelente actor que eternizou títulos como:
- The Prize (my personal favourite): Newman e Elke Sommer numa adorável aventura carregada de acção, comédia e charme; uma espécie de James Bond (amador), formato escritor que vai receber o Prémio Nobel e está na hora errada no sítio errado, apercebendo-se de que algo vai estranho.
- The Long Hot Summer (my personal favourite too): Newman e (aquela que foi sua esposa durante mais de meio século) Joanne Woodward incendeiam o ecran num verão escaldante dos estados do sul.
- Cat On A Hot Tin Roof (uma excelente peça): Newman e Elizabeth Taylor partilham um drama familiar sobre o valor das coisas, das pessoas, dos laços de família e dum passado demasiado presente.
- Sweet Birth Of Youth (outra excelente peça): Newman com o sonho de se tornar uma grande estrela, num filme sobre a fama, os laços que ficam e os preconceitos.
- Cool Hand Luke (o mais emblemático): nunca um presidiário foi tão rebelde e insubordinado como Newman neste filme.
- Butch Cassidy and The Sundance Kid (o par de sonho): nunca um par de ladrões foi tão amado como Newman e Redford neste imprescindível e divertido filme sobre as aventuras e desventuras da mais destemida parelha de ladrões.
- The Sting (o par de sonho 2): Newman e Redford voltam a repetir o golpe neste incontornável e também divertido filme sobre vigaristas.
- The Bronx (um retrato fiel da droga e dum bairro problemático): um polícia confrontado com a investigação dum crime e um bairro à beira dum ataque de nervos. Mais uma vez, demonstra a sua veia divertida, numa das memoráveis cenas (à semelhança dum divertidíssimo momento de Butch Cassidy and The Sundance Kid)
Temos muitos, muitos mais: The Hustler, Somebody Up There Likes Me, Hud, The Colour Of Money, The Veredict, Absence of Malice, Lew Harper, etc etc etc.
Isto apenas para referir alguns dos mais marcantes títulos dos quais foi protagonista, sendo que o seu trabalho atrás das câmaras também foi notável, sobretudo em Rachel Rachel, protagonizado por Woodward.
Para além do cinema, foi um homem politicamente activo. Um lutador e defensor de determinadas causas.
Não é na política que mais se destaca, mas sim na cozinha e solidariedade.
Newman criou uma cadeia de molhos de saladas - devido a um acaso: estava num restaurante, sendo que o molho não lhe agradou, pelo que pediu ingredientes para temperar ele próprio a sua salada – designada Newman’s Own, tratando-se dum gigantesco sucesso culinário, com varrias variantes após o molho original. Esta rede rende milhões de dólares, sendo que cada cêntimo é e sempre foi atribuído a diversas centros de solidariedade, através duma rede, também criada por este ser humano extraordinário.
A rede de solidariedade chama-se Hole In The Wall Foundation (nome do gang de Butch Cassidy And The Sundance Kid). Para além da rede, existem diversos campus que permitem a crianças com determinadas doenças letais escapar um pouco do medo, dor e isolamento inerentes à sua condição.
Outra grande paixão que acompanhou esta verdadeira lenda foi o gosto por carros e por velocidade. Desde 1970 a 1990 destacou-se como piloto amador, sendo o mais velho piloto (aos 70 anos) a ganhar um corrida de prestígio, fazendo parte da equipa de pilotos que ganhou as 24 horas de Daytona em 1995. Nos anos 80 criou uma equipa Newman Haas Racing.
Newman (ex-fumador inveterado) foi diagnosticado cancro de pulmão em Março de 2008, falecendo dessa causa a 26 de Setembro desse ano, na sua casa no estado do Connecticut.
Paul Newman: um actor extraordinário, um activista aplicado, um ser humano admirável.

O Amante de Lady Chatterley

Um excelente livro dum genial e controverso autor.
Vou poupar-vos a fazer comentários a esta obra-prima da literatura.
Apenas deixo uma das passagens dessa pérola:
“Não percebia a beleza que encontrava nela, quando tocava o seu corpo secreto e vivo, quase num êxtase de beleza. Só a paixão é capaz de a despertar. E, quando a paixão já não existe, ou simplesmente não existe, a expressão magnífica que a beleza pode provocar é incompreensível e até um pouco desprezível. A beleza quente, viva do contacto é mais profunda que a beleza intelectual.”
David Herbert Lawrence (11/09/1885 – 02/03/1930)

Pensamento do Dia

"Os poetas são como toda a gente sabe seres de utopia. Essa utopia sem a qual não há progresso."
Eugénio de Andrade (19/01/1923 - 13/06/2005)

O Sorriso

"Creio que foi o sorriso,
sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso."
Eugénio de Andrade (19/01/1923 - 13/06/2005)

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Os Mistérios Da Mente

Já há alguns anos que acompanho o trabalho dos extraordinários Professor António Damásio e Professora Hanna Damásio.
O campo de estudo destes brilhantes neurocientistas é particularmente interessante para mim, uma vez que considero o cérebro um dos mais fascinantes objectos de estudo.
A investigação incide sobre o cérebro e o self (o eu à falta de melhor tradução, conforme referido pelo autor) e a relação entre a percepção de nós próprios e o cérebro.
Na sequência deste estudo foram editados quatro volumes, sendo que iniciei a leitura do mais recente: “O Livro da Consciência” (em inglês Self Comes To Mind).
Continuando os estudos e experiências anteriores, neste volume, o autor aborda duas questões. Passo a citar: “Primeira: como é que o cérebro constrói uma mente? Segunda: como é que o cérebro torna essa mente consciente?”
Nota-se que, conforme o Professor refere, “abordar as questões não é mesmo que responder-lhes”, acrescentando ainda que “seria disparatado partir do princípio que é hoje possível obter uma resposta definitiva”.
Não sendo definitivos, os estudos apresentados ao longo destes livros têm vindo a levantar o véu relativamente ao cérebro e, mais concretamente, à mente e à consciência.
O Professor leva-nos pela mão às profundezas da mente, dos seus constituintes e de todos os intervenientes neste complexo processo, recorrendo a explicações acessíveis e descrevendo as experiências levadas a cabo de forma simples e concreta.
Para além de toda a temática científica contida nos livros, está intrinsecamente subjacente uma vertente filosófica, derivada dos pontos abordados e do significado do objecto de estudo. Por essa razão, esta leitura é não só um meio de auto-conhecimento, como também e - simultaneamente - uma análise inquisidora e esclarecedora.
Um livro promissor, no qual na primeira página consta:
"Minha alma é uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, timbales e tambores, dentro de mim. Só me conheço como sinfonia."
Pessoa - Livro do Desassossego

O Eu

- Olá! Eu sou o João. E tu?
- Tu sabes quem sou.
- Sei? Mas se nunca te vi…
- Sabes sim.
De facto, tinha um ar familiar, mas não o reconhecendo:
- Quem és tu?
- Sou eu.
- Não. Eu é que sou eu. Quem és tu?
- Sou eu – já disse.
- Bem, isto só pode ser uma partida, de primeiro dia de aulas… Se tu estás aí e eu estou aqui, como podes tu ser eu?
- Mas sou.
- Se tu és eu e eu sou eu, então ambos somos eu… E se tu és eu, então diz-me: qual a minha cor preferida?
- Azul.
- A minha comida preferida?
- Empadão da Mãe.
À medida que ia ouvindo as respostas, João ia perdendo o tom irónico.
- Qual o meu maior sonho? – Se acertasse esta: não havia dúvidas (ninguém sabia o seu secreto segredo).
- Escrever um livro.
Silêncio.
Como era possível que, aquele rapaz, soubesse tanto sobre ele próprio? Estaria mesmo a falar com o seu outro eu?
- Como sabes isso tudo?
- Sei, porque já escrevi um livro.
- Mas se tu tens um livro escrito e eu não, como podes dizer que és eu ou saber tanto de mim?
- Porque eu sou quem tu és: quando escreves.
- Como podes dizer que és eu, se o meu sonho é ser escritor e sinto que as palavras não me saem?
- Hão-de sair. Vão jorrar como cascatas furiosas, precipitando-se pelas encostas.
- Como sabes isso tudo?
- Eu sei tudo sobre ti. E sei que as palavras saem dos teus dedos; folhas de Outono caindo das árvores.
Quem era ele?
- É incrível como nunca te lembras de mim. Somos tantos que tu até me esqueces.
- Tantos, quê?
- Pensa bem, João Filipe.
Só a Mãe o tratava assim. A Mãe e… Claro:
- Ricardo! Já podias ter dito.
- Passaste as férias todas longe de mim.
- Hum, sabes que também não estive cá.
- Isso nunca foi desculpa.
- Mas tu és o meu amigo das aulas: o companheiro de carteira.
- Sou tão importante que já nem te lembravas de mim…
- Claro que és importante. Mas as férias foram tão boas - e aconteceu tanta coisa - que parece que tudo o resto se eclipsou da minha mente.
- Hum, tu sempre foste muito distraído, por isso eu estou aqui para garantir que estás atento nas aulas.
- Sabes que mais? Já tinha saudades tuas!
E sorriu.
A Professora prendeu o olhar naquele aluno sorridente, que fitava – estranhamente - o vazio.

Mad Men ... Still

Bom, ao fim de três temporadas (e quase quase a espreitar o primeiro episódio da quarta) confirmo que Mad Men é a par de Six Feet Under das melhores séries de sempre.
Quanto mais vejo Mad Men mais gosto de Roger Sterling (não este não é o protagonista com todas as idiossincrasias descritas em posts anteriores). Este é um dos personagens mais alegres e apaixonados pela vida de que há memória. Roger: o típico bom vivant da época retratada. É um personagem que reúne um refinado sentido de humor com uma enorme vontade de viver.
Quase que teria idade para ser pai de Don e, no entanto, é muito mais jovem (ou muito mais livre) e - definitivamente - muito mais alegre do que o nosso querido protagonista.
À partida pensar-se-ia que tal se poderia dever ao passado de Roger ser muito menos sombrio do que o de Don. É verdadeiro, mas – nem assim – o passado de Roger é doce, no entanto, este é daqueles personagens que decidiu deixar o passado onde ele pertence: lá atrás e abraçar a vida com toda a paixão possível. Certamente que há passados e passados, há histórias e histórias, mas, embora a de Don não sejam “ Morangos Silvestres” (um filme que merecerá uma referência mais extensa, talvez brevemente) seria algo que poderia ser posto no seu devido lugar, sendo devidamente desmistificado.
Bem, mas assim sendo não teríamos das melhores séries de sempre, nem estes personagens tão apaixonantes para nos acompanharem.
Os pontos de vista retratados sobre as diversas temáticas abordadas são bastante interessantes e até mesmo intrigantes.
Continua imperdível!

domingo, 5 de dezembro de 2010

Cela 211

Há filmes assim: discretos, surpreendentes, que marcam quem os vê.
Filmes que nos fazem pensar em como um pequeno acaso pode mudar e tocar diversas vidas com consequências inimagináveis.
Filmes que nos fazem pensar que não há maus nem bons. Há pessoas e contextos e cada um torna-se quem é perante as conjeturas da situação em que se vê imerso.
Filmes que nos fazem pensar na adatabilidade do ser humano e na supremacia da capacidade de sobrevivência.
Filmes que nos fazem pensar o quão frágil é a vida e o quão fortes somos quando temos motivos para lutar.
Filmes que nos fazem pensar na importância do que temos por adquirido e, no quanto, desvalorizamos essas dádivas das quais a vida é feita.
Filmes que nos fazem pensar que há sempre quem se deixe vender, corrompendo uma ideia, um pensamento, um ideal; pois um homem pode ter força para mover uma multidão, mas apenas a união faz a força.
Filmes que nos fazem pensar que realmente só há uma coisa que dá sentido a tudo isto.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Pensamento do Dia

A fotografia é a poesia do olhar.

O Advento

No Natal celebra-se o nascimento de Cristo com tudo o que lhe está associado: a esperança de um mundo melhor, a fé, a alegria, a partilha, o amor.
Dar é uma maneira de materializarmos o quanto gostamos de alguém. Os três reis foram os primeiros a iniciar uma tradição que atravessaria séculos e séculos, gerações e gerações. A passagem do tempo iria perpetuar um ritual tão simbólico como o gesto de dar.
Hoje em dia as prendinhas de Natal estão profundamente enraízadas na nossa sociedade.
Com tantas decorações e publicidade estará o Natal a tornar-se algo meramente comercial? Será que se está a perder o sentido desta data?
Não querendo perder a ideia original do porquê e para quê que se dá, aproximando-se aquele que é um dos momentos mais emblemáticos do ano, aproveito para deixar algumas sugestões de prendinhas originais e solidárias.
Poderão encontrar artesanato muito original, cuja a aquisição estará a contribuir para ajuda aos animais:

http://artesanatoanimaisderua.blogspot.com/


Outra forma de ajudar é fazer voluntariado, adotar um animal ou fazer um donativo:


http://www.sosanimal.com/

http://www.refugiodaspatinhas.org/ajudar

http://www.bianca.pt/

http://www.aaaporto.com/site/php/ajudenos.php


Para além destas associações há inúmeras outras que ajudam a contribuir para as mais diversas causas.
E qual a melhor altura para relembrar a importância de ajudar estas entidades senão a mais bela época do ano?

Há ainda quem celebre o Advento com um prendinha diária até ao grande acontecimento. Recordo-me - muito bem - dos calendários do mês de Dezembro, que a minha mãe me dava, há muitos muitos anos, com um chocolate para cada dia, até ao tão esperado.
Esta ideia poderia ser recuperada ajudando uma causa diferente cada dia, um pequeno doce para cada uma destas associações que tanto precisam.

O mercado mundial

"Nunca o capitalismo foi um jogo tão viciado e tão amoral. Se vivesse hoje, Adam Smith seria anarquista.
Vejo na televisão imagens de rua da Irlanda, da Grécia, da Espanha, e são iguais às de Portugal: as pessoas movem-se de ou para o trabalho, há transportes a funcionar, comércio aberto, crianças a irem para escola, enfim, a vida como habitualmente. A mim parece-me que estes países e estas pessoas estão vivas, que não estão à beira da morte. Mas não, é ilusão minha: todos os noticiários nos dizem que sobre esta gente e estes países pesa a mais tenebrosa ameaça destes sinistros tempos económicos que se vivem: os mercados.
Estou farto dos mercados, estou farto da constante ameaça dos mercados: os mercados acordaram bem dispostos mas, depois do almoço, os mercados enervaram-se e subiram-nos outra vez as taxas de juro; os mercados não gostam disto, os mercados querem aquilo; os mercados querem um orçamento aprovado, os mercados não acreditam na execução do orçamento que queriam aprovado; os mercados assustam-se quando o ministro das Finanças fala, os mercados reagem em stresse se o ministro fica calado mais do que dois dias; os mercados querem que os Estados desçam o défice, diminuindo despesas e aumentando receitas, mas os mercados fogem se a PT pagar um euro que seja de imposto sobre as mais-valias do maior negócio europeu do ano; os mercados estão preocupados com a quebra do consumo, mas os mercados adoram os aumentos do IVA; os mercados recomendam cortes salariais, mas os mercados são frontalmente contra os cortes nos salários e prémios dos gestores das grandes empresas, porque isso é uma intromissão estatal que contraria a regra da concorrência... nos mercados.
Sim, eu sei: à falta de alternativa, estamos na mão dos mercados e não os podemos mandar para onde bem nos apetecia e eles mereciam. Mas convém não esquecer que foi esta fé nos mercados, como se fosse o boi-ápis, a desregulação e falta de supervisão dos famosos mercados, que mergulharam o mundo inteiro na crise que vivemos, devido ao estoiro do mercado imobiliário especulativo e do mercado financeiro, atulhado do que chamam "activos tóxicos" - que deram biliões a ganhar a muito poucos e triliões a pagar por todos. A Irlanda, que hoje os mercados flagelam com juros acima dos 8%, está onde está, não porque a sua economia tenha ido à falência (pelo contrário, e como sucede com Portugal, está em crescimento), mas porque os seus tão acarinhados bancos, maravilha fatal dos mercados e do liberalismo selvagem, rebentaram de ganância e irresponsabilidade e obrigaram o Estado a resgatá-los à custa de um défice de 32%. Num mundo justo, os mercados deveriam ser os primeiros a pagar pela falência da Irlanda; no mundo em que vivemos, quem ganha com isso são os mercados outra vez e quem paga são os contribuintes - irlandeses primeiro, europeus depois - e os desempregados da Irlanda. Por isso, a srª Merkel disse que seria justo que os mercados (isto é, os investidores na dívida pública irlandesa) participassem também nos custos de resgatar a dívida irlandesa, se isso se vier a revelar inevitável. Mas, no mundo em que vivemos, o que sucedeu é que toda a gente caiu em cima da srª Merkel, porque a sua declaração logo fez subir as taxas de juro junto dos indignados mercados. Mesmo no Inverno, já nem espirrar se pode, porque os mercados não gostam.
Mas é assim que estamos: nas mãos dos abutres. Sim, eu sei, não adianta para nada matar o mensageiro no lugar da mensagem. Nem eu o faço: já escrevi várias vezes que agora não há volta a dar. Vivemos há tempo de mais a gastar o que não tínhamos e a endividar-nos para o futuro. Todos - indivíduos, famílias, empresas, bancos, autarquias, Estado - instalámo-nos irresponsavelmente num modus vivendi que consistiu em pedir dinheiro emprestado por conta da riqueza que um dia iríamos ter e nunca tivemos. Um exemplo basta para dar conta da insanidade financeira em que o país mergulhou: convencemo-nos de que era possível que cada português fosse dono de habitação própria, coisa jamais vista em lugar algum. Mas também nos convencemos (e ainda há quem esteja convencido) de que podemos ter auto-estradas de borla, o maior consumo público de farmácia e tratamentos hospitalares de toda a Europa ou um sistema de pensões cujas despesas aumentam incessantemente enquanto as receitas diminuem paulatinamente. Era fatal que um dia teria de chegar a conta destas criminosas ilusões que uma geração irresponsável de políticos alimentou e uma geração de eleitores aplaudiu. Chegou agora e eu acho que não temos outro caminho senão enfrentar a inevitabilidade de começar a cortar brutalmente nas despesas para podermos matar o défice, cobrir os juros usurários que os mercados agora nos cobram e começar a amortizar a dívida acumulada. E seria justo que tal sucedesse enquanto está no poder a geração que nos enterrou em toda esta dívida e dela beneficiou.
Isso é uma coisa. Outra, é assistir de braços cruzados à ditadura dos mercados e à retoma, como se nada tivesse sucedido, das regras de um capitalismo moralmente pervertido e socialmente insustentável. Países como Portugal, a Irlanda, a Grécia, não obstante todos os erros próprios cometidos e a responsabilidade que têm nas suas actuais situações, têm o direito de exigir condições decentes para pagarem o que devem. Bruxelas e o FMI sabem muito bem que, com juros entre os 7 e os 11%, não há sacrifícios, nem despedimentos, nem miséria que chegue para conseguir pagar, sobrevivendo. É um escândalo que a PT não pague um tostão de mais-valias num negócio de 7500 milhões de euros porque factura os lucros da operação através de uma sua subsidiária sediada na Holanda, onde a taxa de IRC é de... 0%! É um escândalo para a PT, um escândalo para um país como a Holanda, que serve de barriga de aluguer para dumping empresarial e fuga fiscal, e um escândalo para a UE, os Estados Unidos e todo o G-20, que nem sequer se atreveram ainda, mesmo depois de terem visto o que viram, a começar a concertar-se para pôr fim a essa coisa pornográfica que são as offshores - autênticos salteadores da riqueza das nações e fábricas de desempregados.
Eu sei também qual é a resposta pronta, de cada vez que se fala nas offshores: "se nós não temos, têm os outros e as empresas fogem para os melhores mercados". Pois, mas se os senhores do mundo, concertados nas reuniões do G-20, decidirem todos boicotar as offshores e as empresas que lá existem, elas acabam, fatalmente. E, se já se conseguiu estabelecer regras universais para o comércio mundial e assuntos ainda mais complexos, porque não se consegue aqui? A resposta provável é esta: porque os senhores do mundo, ao contrário do que se possa pensar, não são Obama, nem Hu Jintao, nem Medvedev, nem Merkel ou Sarkozy: os senhores do mundo são uns cavalheiros que se reúnem uma vez por ano em fóruns como o de Davos, na Suíça, e aí, enquanto representantes do verdadeiro poder - financeiro, empresarial, político, militar e de informação e comunicação - entre si estabelecem as regras do jogo. E agora, com a Rússia e a China tão devotamente convertidas ao capitalismo, nunca foi tão fácil aos senhores do mundo estabelecerem as regras que lhes interessam. E nunca o capitalismo foi um jogo tão viciado e tão amoral. A falência óbvia do socialismo foi o caminho aberto para a libertinagem, sem regras, sem princípios morais e sem qualquer preocupação de que a economia sirva os povos, em lugar de os sugar. Se vivesse hoje, Adam Smith seria anarquista."
Miguel Sousa Tavares, texto publicado no Expresso de 20 de novembro de 2010