segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Monteiro dos Milhões

Era uma vez um homem, nascido - em berço de ouro - a 27 de Novembro de 1848, no Rio de Janeiro. Chamava-se António Augusto Carvalho Monteiro e viria a ser apelidado de Monteiro dos Milhões e a dar origem a uma das mais emblemáticas obras de Portugal.
Os seus pais eram portugueses e possuíam uma enorme fortuna, proveniente do comércio de café e pedras preciosas.
Essa grande fortuna permitiu a Monteiro dos Milhões dedicar-se à sabedoria. Começou por embarcar para Portugal para estudar Direito na prestigiada Universidade de Coimbra. Licenciou-se em Leis, mas Monteiro era um homem de ciência.
Possuía uma das mais raras colecções camonianas, um amplo conhecimento de botânica e uma vasta colecção de borboletas. Sempre atento ao progresso, foi o primeiro homem a possuir electricidade em Sintra.
Dizem que era um homem de carácter, com a excentricidade que os Milhões lhe proporcionavam, da qual é exemplo o emblemático relógio Leroy 01.

O Relógio
Trata-se dum relógio projectado por Junod e executado por Charles Piquet, a pedido de Monteiro à casa relojoeira parisiense Leroy em 1897.
Este relógio foi considerado o mais complexo do mundo, arrebatando o Grande Prémio da Exposição Universal de Paris em 1900. Extremamente preciso para a época, o mecanismo de quatro níveis encontra-se fechado numa caixa de ouro onde figuram os signos do Zodíaco.
Esta obra-prima custou 20.000 francos e demorou quatro anos a ser executada.
O relógio foi transportado para Portugal pelo Rei D. Manuel II, também ele cliente da casa Leroy.
O desenho da caixa é de autoria dum dos mais talentosos e emblemáticos Arquitectos e Cenógrafos da época Luigi Manini (que viria a colaborar na elaboração da Quinta da Regaleira) e foi ciselado por Burdin.
A cidade de Besançon adquiriu o relógio aos herdeiros em 1955 pela prodigiosa quantia de 2.000.000 de francos.
Encontra-se actualmente exposto no Museu do Tempo em Besançon, constituindo uma das suas principais atracções.
Além dos mecanismos das horas, minutos e segundos, o Leroy 01 oferece ainda:
• 1 - dia da semana
• 2 - dia do mês
• 3 - calendário perpétuo dos meses e dos anos bissextos
• 4 - milésimo por cem anos
• 5 - fases da Lua
• 6 - estações do ano, solstícios e equinócios
• 7 - equação do tempo
• 8 - cronógrafo
• 9 - contador de minutos com retorno a zeros
• 10 - contador de horas
• 11 - mecanismo de mola
• 12 - toque regulável com som forte, médio e silencioso
• 13 - repetição da hora, dos quartos e dos minutos, com três timbres
• 14 - estado do céu no hemisfério boreal, no momento do dia, indicado pela data (o céu estando animado pelo movimento sideral, isto é, avançando 3 minutos e 56 segundos por dia sobre o tempo médio; a representação do céu e do horizonte de Paris, com 236 estrelas; a representação do céu e do horizonte de Lisboa, com 560 estrelas)
• 15 - estado do céu no hemisfério austral (no meio de um mecanismo de recarga que anima o céu por um movimento de rotação de oeste para este, a representação do céu e do horizonte do Rio de Janeiro, com 611 estrelas)
• 16 - hora de 125 cidades do mundo
• 17 - hora do nascer do sol em Lisboa
• 18 - hora do pôr do sol em Lisboa
• 19 - termómetro metálico centígrado
• 20 - higrómetro de cabelo
• 21 - barómetro
• 22 - altímetro para 5000 metros
• 23 - sistema de acerto do relógio sem o abrir
• 24 - bússola

Não podemos deixar de falar de Monteiro dos Milhões sem referir a Quinta da Regaleira. Situada no ambiente misterioso - e algo fantasmagórico - da Serra de Sintra, os jardins do Palácio da Quinta da Regaleira são uma biografia deste homem.

Quinta da Regaleira
Em 1697 José Leite era o proprietário da propriedade que hoje integra a Quinta.

A propriedade foi comprada por Francisco Albertino Guimarães de Castro em 1715.

Em 1830, na posse de Manuel Bernardo, a Quinta passa a ter a designação actual.

Em 1840 a Quinta foi adquirida por aquela que viria a ser agraciada com o título de Baronesa da Regaleira.
A Regaleira como hoje a conhecemos começa em 1892, ano em que a propriedade é adquirida pelo protagonista da nossa história. A maior parte da construção actual da quinta iniciou-se em 1904, sendo concluída em 1910.

Simbologia
O esoterismo místico judaico, com base na procura de Deus e na experiência da divindade, baseia-se na Lei das Correspondências que tem como objectivo encontrar – através do recurso à analogia – relações simbólicas entre o divino e o terreno, entre o visível e o invisível, entre o Homem e o Mundo.
A passagem de uma a outra dimensão é baseada em cerimónias de iniciação, através de encenações e rituais de carácter mágico, nos quais o neófito recebe o segredo da transmutação, aceita a filiação no grupo de companheiros e acede a um nível espiritual superior.
A Franco-Maçonaria antiga provém das confrarias ou corporações profissionais de pedreiros ou construtores das catedrais medievais. À defesa de interesses profissionais juntavam preocupações de carácter filantrópico, moral e religioso. Os grupos maçónicos organizados em sociedades secretas reuniam-se em lojas. Foram perdendo o carácter exclusivamente operativo e começaram a aceitar membros estranhos ao ofício, mas com os mesmos ideais iniciáticos.
O declínio das confrarias dá origem à Maçonaria Moderna, cujo aparecimento teve lugar em Inglaterra em 1717.
A Maçonaria provocou, praticamente desde o início, a oposição da Igreja Católica, embora muitos dos ensinamentos maçónicos, de inspiração cristã, preconizem a crença nas virtudes da caridade, na imortalidade da alma e na existência de um princípio espiritual superior denominado Grande Arquitecto do Universo.
Crê-se que Carvalho Monteiro acreditava na co-existência de ambas as fés, sendo que tal é bem patente, na Regaleira, sobretudo na Capela da Santíssima Trindade.
Grande parte da simbologia maçónica, sobretudo a dos altos graus, inspira-se em correntes esotéricas tais como a alquimia, o templarismo e o rosacrucianismo.
Todos estes símbolos estão inscritos em diversos locais da Regaleira.
A Alquimia tem por objectivo a transformação (real ou simbólica) dos metais em ouro. As operações alquímicas são realizadas num Atanor, ou seja, num forno alquímico de combustão lenta, com um cadinho e um balão nos quais se pretende espiritualizar a matéria e materializar o espírito. Assim, o propósito da Alquimia é a obtenção da Pedra Filosofal, simbiose entre matéria e espírito, da qual poderia resultar, além da transformação dos metais em ouro, a realização do desejo primordial da Humanidade: o elixir da vida, capaz de proporcionar saúde e eterna juventude. Por esta razão, há quem considere a procura alquímica como uma metáfora da condição humana: a salvação da alma. A Alquimia assumiu, depois do século XVIII, um carácter manifestamente religioso, dedicando-se sobretudo ao estudo das relações espirituais e energéticas entre o Homem (microcosmo) e o Universo (macrocosmo). Aceita-se que o Homem, simultaneamente, faz parte e se funde com o universo que o engloba.
O ambiente da Regaleira assenta num Cristianismo Escatológico: o fim dos tempos. Quer recorramos à lição da escatologia cósmica, que prenuncia o fim do universo e da humanidade, quer nos atenhamos à escatologia individual, que assenta na crença da sobrevivência da alma depois da morte, é a mesma ideia que permanece.

É também um Cristianismo gnóstico, apoiado em discursos míticos e em conhecimentos sagrados que prometem a salvação dos fiéis e o retorno dos espíritos.

Em suma, é um Cristianismo pleno de ideais neotemplárias, associadas ao Culto do Espírito Santo, que encontramos na tradição mítica portuguesa.
Os templários foram monges-soldados, cuja ordem militar, fundada no período das Cruzadas em 1119, visava proteger os lugares santos da Palestina contra o perigo dos infiéis. Os votos de pobreza e castidade não impediram os Cavaleiros da Milícia do Templo de enriquecer e de desempenhar um importante papel económico e político, tanto no Oriente como na Europa. Por esta razão, criaram poderosos inimigos, como o rei Filipe IV de França e o Papa Clemente V, que levaram à perseguição e à extinção da ordem em 1314, sob acusações de blasfémia e imoralidade.

Em 1317, D. Dinis de Portugal afectou os bens dos templários à Ordem de Cristo, que muitos aceitaram como sua sucessora.
Desaparecidos os templários não desapareceu o espírito, baseado na defesa dos lugares sagrados e na luta contra o mal, renasceu em várias correntes e organizações iniciáticas como sendo a afirmação simbólica da sobrevivência da Ordem do Templo. A cruz templária no fundo do Poço Iniciático, a cruz da Ordem de Cristo no pavimento da Capela, bem como todas as outras cruzes dispostas na Capela da Santíssima Trindade, testemunham a influência do templarismo nos ideais de Carvalho Monteiro.
Há ainda, na Regaleira, referências ao movimento Rosa-Cruz. Trata-se duma corrente esotérica iniciada no séc. XVII, de tendência cristã, utilizando os símbolos conjuntos da rosa e da cruz. O movimento propunha reformas sociais e religiosas, exaltava a humildade, a justiça, a verdade e a castidade, apelando à cura de todas as doenças do corpo e da alma. Tornou-se também grau maçónico de várias Ordens.

Carvalho Monteiro tinha o desejo de construir um espaço grandioso, em que vivesse rodeado de todos os símbolos que espelhassem os seus interesses e ideologias. Quis dar vida ao glorioso passado de Portugal, daí a predominância do estilo neomanuelino com a sua ligação aos Descobrimentos. Esta evocação do passado passa também pela arte gótica e alguns elementos clássicos.

O bosque que ocupa a maioria do espaço da Quinta, não está disposto ao acaso. Começando mais ordenada e cuidada na parte mais baixa da quinta, mas, sendo progressivamente mais selvagem até chegarmos ao topo, esta disposição reflecte a crença no primitivismo de Carvalho Monteiro.

O Patamar dos Deuses é composto por nove estátuas dos deuses greco-romanos (Fortuna, Orfeu, Vénus, Flora, Ceres, Pã, Dionísio, Vulcano e Hermes), sendo que cada um representa cada uma das partes do ciclo da vida desde o início até ao final, num sucessivo ciclo. Existe também uma estátua dum Leão - que já existia aquando da aquisição da Quinta por Carvalho Monteiro - mas que foi relocalizado, como símbolo de protecção, representado assim o guardião de toda a Quinta.

O Poço Iniciático é constituído por uma galeria subterrânea com uma escadaria em espiral, sustentada por colunas esculpidas. A escadaria é constituída por nove patamares separados por lanços de quinze degraus cada um, invocando referências à Divina Comédia de Dante e que podem representar os nove círculos do Inferno, do Paraíso, ou do Purgatório. No fundo do poço está embutida em mármore, uma rosa dos ventos sobre uma cruz templária - que é o emblema de brasão de Carvalho Monteiro e, simultaneamente, indicativo da Ordem Rosa-cruz.

O poço diz-se Iniciático pois acredita-se que era usado em rituais de iniciação à maçonaria. A simbologia do local está relacionada com a crença que a terra é simultaneamente a Mãe dondo provém a vida e a sepultura, para onde se voltará. Muitos ritos de iniciação aludem a aspectos do nascimento e morte ligados à terra, ou renascimento.
O poço está ligado por várias galerias ou túneis a outros pontos da Quinta, a Entrada dos Guardiães, o Lago da Cascata e o Poço Imperfeito. Estes túneis estão cobertos com pedra importada da orla marítima da região de Peniche, pedra que dá a impressão de um mundo submerso, um mundo infernal.

A Capela da Santíssima Trindade possui uma bela fachada baseada no revivalismo gótico e manuelino. Nela estão representados Santa Teresa d'Ávila e Santo António. No meio, por cima da entrada está representado o Mistério da Anunciação (o anjo Gabriel dizendo a Maria que ela vai ter um filho do Senhor) e Deus Pai entronizado.
No interior: no altar-mor vê-se Jesus, depois de ressuscitar, a coroar uma mulher que pode ser Maria ou Madalena. Do lado direito novamente Santa Teresa e Santo António, desta vez em painéis de mosaico. Do lado oposto um vitral com a representação do milagre de Nossa Senhora da Nazaré. No chão estão representados o Globo Celeste e a Cruz da Ordem de Cristo, rodeados de estrelas de cinco pontas.


A Torre da Regaleira foi construída para dar a quem a sobe a ilusão de se encontrar no eixo do mundo.


O edifício principal da Quinta propriamente dita ou Palácio é marcado pela presença de uma torre octogonal. A decoração esteve a cargo do escultor José da Fonseca.
Em toda a arquitectura do local está patente o perfeccionismo e trabalho árduo de Manini.

O Túmulo
Monteiro dos Milhões mandou também construir o seu túmulo a Manini.

O seu jazigo (situado no Cemitério dos Prazeres) – tal como a Quinta da Regaleira - está imerso em simbologia.

A porta do jazigo era aberta com a mesma chave que abria a Quinta da Regaleira e o seu palácio em Lisboa (situado na Rua do Alecrim).
O jazigo está localizado do lado esquerdo na alameda de quem entra no Cemitério, ocupando uma área com o lugar, o tamanho e a forma do secretário num templo maçónico, referenciando a igreja como oriente.
A porta do jazigo possui uma abelha gravada na aldraba, carregando uma caveira.
Diz quem sabe que: a abelha - organizada e empenhada – representa a disciplina do maçom.
O gradeamento, das traseiras do jazigo, ostenta a simbologia do vinho e do pão, o espírito e o corpo.

Corujas e papoilas dormideiras ornamentam o jazigo – simbolizando a sabedoria e a morte.

A sua jornada terminou a 24 de Outubro de 1920 em Sintra.
Em 1942 a Quinta foi vendida a Waldemar d’Orey que, sem alterar de modo relevante o que já tinha sido realizado, procedeu a obras para adaptar a Quinta, de modo a acolher a sua enorme família.

Em 1987 a Quinta da Regaleira é vendida à empresa japonesa Aoki Corporation, deixando de ser utilizada como habitação, mas permanecendo cerrada ao público.
Finalmente, em 1997 a Quinta da Regaleira é adquirida pela Câmara Municipal de Sintra, sendo iniciados trabalhos de recuperação deste valioso património.
Actualmente, a Quinta da Regaleira - enquadrada no mágico cenário da Serra de Sintra - está aberta ao público, sendo anfitriã de variadas actividades culturais e testemunho da vida duma lenda verdadeiramente inspiradora.



Nota: Este post é baseado em diversos artigos associados ao tema, bem como na visita guiada à Quinta da Regaleira.

Um comentário: