quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

O Eu

- Olá! Eu sou o João. E tu?
- Tu sabes quem sou.
- Sei? Mas se nunca te vi…
- Sabes sim.
De facto, tinha um ar familiar, mas não o reconhecendo:
- Quem és tu?
- Sou eu.
- Não. Eu é que sou eu. Quem és tu?
- Sou eu – já disse.
- Bem, isto só pode ser uma partida, de primeiro dia de aulas… Se tu estás aí e eu estou aqui, como podes tu ser eu?
- Mas sou.
- Se tu és eu e eu sou eu, então ambos somos eu… E se tu és eu, então diz-me: qual a minha cor preferida?
- Azul.
- A minha comida preferida?
- Empadão da Mãe.
À medida que ia ouvindo as respostas, João ia perdendo o tom irónico.
- Qual o meu maior sonho? – Se acertasse esta: não havia dúvidas (ninguém sabia o seu secreto segredo).
- Escrever um livro.
Silêncio.
Como era possível que, aquele rapaz, soubesse tanto sobre ele próprio? Estaria mesmo a falar com o seu outro eu?
- Como sabes isso tudo?
- Sei, porque já escrevi um livro.
- Mas se tu tens um livro escrito e eu não, como podes dizer que és eu ou saber tanto de mim?
- Porque eu sou quem tu és: quando escreves.
- Como podes dizer que és eu, se o meu sonho é ser escritor e sinto que as palavras não me saem?
- Hão-de sair. Vão jorrar como cascatas furiosas, precipitando-se pelas encostas.
- Como sabes isso tudo?
- Eu sei tudo sobre ti. E sei que as palavras saem dos teus dedos; folhas de Outono caindo das árvores.
Quem era ele?
- É incrível como nunca te lembras de mim. Somos tantos que tu até me esqueces.
- Tantos, quê?
- Pensa bem, João Filipe.
Só a Mãe o tratava assim. A Mãe e… Claro:
- Ricardo! Já podias ter dito.
- Passaste as férias todas longe de mim.
- Hum, sabes que também não estive cá.
- Isso nunca foi desculpa.
- Mas tu és o meu amigo das aulas: o companheiro de carteira.
- Sou tão importante que já nem te lembravas de mim…
- Claro que és importante. Mas as férias foram tão boas - e aconteceu tanta coisa - que parece que tudo o resto se eclipsou da minha mente.
- Hum, tu sempre foste muito distraído, por isso eu estou aqui para garantir que estás atento nas aulas.
- Sabes que mais? Já tinha saudades tuas!
E sorriu.
A Professora prendeu o olhar naquele aluno sorridente, que fitava – estranhamente - o vazio.

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